quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Consultórios populares, a gestão

Existe um padrão para organização do trabalho em cada consultório que só não é seguida em casos excepcionais. A jornada de trabalho é das 7 ou 8 horas até às 16 ou 17 horas. A manhã é dedicada para atividades internas (ainda que às vezes existam grupos de atividades físicas na primeira hora de trabalho), o médico realiza as consultas do dia, todos que chegam ao consultório são atendidos, sem qualquer tipo distinção. As consultas não são agendadas, ainda que os retornos de certos grupos de pacientes sejam bem programados isso é combinado entre médico e paciente, não existe agenda. Isso não era um problema, em quase todos os lugares era muito factível atender a todos que acessam ao serviço pela manhã. Complicava-se apenas nos lugares onde a população que se referenciava ao consultório era muito grande (por falta de médicos na área ou em regiões fronteiriças com a Colômbia), nestes casos a atividade vespertina costuma ser comprometida. Enquanto o médico atende o defensor de saúde aplica medicação injetável, inalação, reorienta algum paciente que tenha permanecido com dúvidas e recebe os pacientes que estão chegando, com uma avaliação de gravidade superficial e empírica.
Os prontuários dos pacientes são separados por condições de saúde. Existe uma pasta para cada patologia crônica, se o paciente é afetado por mais de uma seu prontuário é colocado em pasta para “casos especiais”. Os prontuários das crianças são separados por faixa etária, assim como os idosos saudáveis e as gestantes têm pastas específicas. Caso não existam patologias crônicas ou outras condições de risco atribuíveis as fichas são arquivadas por família. É notado muito esmero em toda a organização e arquivamento das histórias clínicas. E apesar de parecer uma organização pouco prática e não centrada na família, os médicos dão pouca importância para isso pois sabem pontuar, de memória, cada um dos casos, atribuindo essa facilidade a uma quantidade de famílias adscritas limitada. Também sempre sabiam dizer, sem hesitação, quantos hipertensos, diabéticos, asmáticos e gestantes atendia em sua área.
O período da tarde é dedicado às visitas domiciliares. Em geral realizadas a pé (nas áreas pequenas) pelo médico, defensor de saúde, às vezes alguém do comitê de saúde e com os alunos que estivessem estagiando no consultório. As visitas são realizadas a pacientes que tenham qualquer tipo de dificuldade de ir ao consultório e pacientes cuja necessidade é informada pelo comitê de saúde. Além disso, a médio prazo, o objetivo é visitar todas as residências da área adscrita. A cada visita a família é avaliada e classificada quanto aos seus riscos e vulnerabilidades biológicos, sociais e econômicos. A essa atividade chamam de dispensarização.
De 8 em 8 dias o médico é deslocado do consultório para um plantão de 12 horas no Pronto Atendimento de referência da região, nos Centros de Diagnóstico Integral (CDI). No dia do plantão a atividade vespertina do consultório é suspensa, dando lugar a preparação para o plantão. No dia seguinte ao plantão noturno, eles têm direito à uma folga pós-plantão, apesar da mesma nem sempre ser cumprida e muitos dos médicos continuarem trabalhando no dia seguinte.
Outra atividade freqüente, que costuma ocorrer no início das manhãs ou no final das tardes, são os grupos. Os mais variados possíveis, são grupos de idosos, de caminhada, de dança, de educação em saúde para crianças, de hidroterapia, de hipertensos, diabéticos, de geração de renda. São conduzidos pelos médicos, educadores físicos ou por pessoal treinado na comunidade. A maioria conta com boa adesão. São direcionados à educação em saúde e ao controle de enfermedades crônicas, mas também ao aumento na qualidade de vida dos pacientes e da própria equipe de saúde.
Os relatos são emocionantes. Os relatos do envolvimento e do entrosamento dessas equipes com suas comunidades. Certa companheira, de um comitê de saúde, começou a frequentar um grupo de atividades físicas como uma forma de enfrentar a dor do assassinato do irmão. Em pouco tempo já estava tão envolvida com toda aquela atividade e mostrando tanto gosto, que foi convidada a participar de um treinamento com o educador físico cubano. Agora, quatro anos depois, coordena grupos todas às tardes e todas as manhãs. Sua terapia reverteu-se em dedicação à comunidade, em seu próprio trabalho, pelo qual se diz apaixonada. A médica já tinha sua especialidade, até gostava, mas resolveu experimentar essa experiência para a qual os médicos estavam sendo chamados a contribuir. Cursou a residência de Medicina General y Integral e começou a trabalhar em um consultório afastado do centro da cidade. Até então tinha problemas no desenvolvimento de relacionamentos, um tanto relacionado (como ela diz) à sua obesidade. No trabalho com a comunidade, no envolvimento mútuo, mútuas afeições se desenvolveram. No cumprimento de seu trabalho, uma auto-estima se desenvolveu. E surgiu a necessidade de participar dos grupos junto com seus queridos pacientes, era preciso estimula-los a sair de casa, a envolverem-se uns com os outros. Seus pacientes desenvolveram autonomia, aprenderam a sair de casa, todos fizeram boas amizades. A médica os trata com imenso carinho, dentro e fora do consultório e, trabalhando nos grupos conseguiu ela mesma, perder mais de 15 kg.
Muitos trabalhadores venezuelanos, de todas as categorias, dizem estar atendendo a um chamado do presidente. Essa são suas respostas quando se pergunta porquê ou como foram parar ali, naquele consultório. O chamado presidencial convoca à construção de um novo sistema público e nacional de saúde, à construção de uma nova realidade social, ao desenvolvimento de novas práticas sociais e políticas. Respondendo a ele pessoas apoiaram a chegada de médicos cubanos, comitês de saúde formaram-se em torno desses consultórios, médicos abdicaram de seus antigos trabalhos e formações (em Medicina Intensiva, Ginecologia, Cirurgia, Infectologia etc) e foram se arriscar em uma nova carreira. Os cooperantes cubanos falam da solidariedade e do internacionalismo socialista de seu país e que os leva a essas missões. Seus grandes estímulos estão no aprendizado de vida e profissional (patologias e condições de saúde que não existem em Cuba) e no reconhecimento moral que recebem ao retornar a seu país.
Em relação à estrutura física desses serviços, as condições são bastante heterogeneas país a fora. Muitos consultórios ainda são lugares adaptados de diversas formas, em salas de outras instituições ou em cômodos de casas das comunidades. Os poucos lugares que conheci nessas condições estavam em bom estado organizativo e sanitário, apesar disso, chegaram-me notícias de lugares que estavam em condições bastante ruins. Os consultórios que já haviam sido construídos contavam, no mínimo, com uma sala de atendimentos, uma de observação e curativos e outra de espera. Alguns tinham mais de uma sala de atendimento, outros tinham uma sala específica para vacinação. Os equipamentos eram os mínimos para se realizar os atendimentos, macas, lâmpadas para exame ginacológico, para aplicação de medicações injetáveis, inaladores elétricos, geladeiras para vacinas etc.
Com tudo isso pode se considerar que a Misión Barrio Adentro muda de forma importante, radical, uma política social. É sua plena democratização, a radicalização do acesso à saúde, a vontade política de tornar realidade um programa de saúde da família. Parece-me que essa força e velocidade da implantação distinguem o programa venezuelano de saúde da família do brasileiro. Em 5 anos já estão falando em 70 a 80% de cobertura, falamos dessa cobertura aqui depois de 15 anos da criação do programa.
A análise dos anuários de mortalidade do ministério da saúde mostram uma queda da mortalidade infantil, mas não evidenciam a mesma queda em outras patologias. Isso evidencia que a implantação da política avançou muito e atingiu certa efetividade, mas que talvez ainda falte avançar alguns pontos, talvez relacionado à integralidade do sistema.

Um comentário:

Anônimo disse...

Prezado Bruno, fiquei conhecendo hoje seu blog através da lista de e-mails Extensão Popular e, como editor de um site cultural (http://opensadorselvagem.org), gostaria de verificar contigo sobre a possibilidade de divulgar sua experiência e os artigos publicados neste blog no site acima referido. Faríamos uma série de artigos, de preferência ilustrados com imagens de sua estadia.

Se achares interessante divulgar para um maior número de pessoas, saibas que noss rede conta hoje com cerca de 700 mil acessos/mês e é de nosso interesse máximo divulgar esta sua experiência.

Aguardo seu contato através do contato a-r-r-o-b-a opensadorselvagem.org

Se concordares com a proposta, lhe encaminho um tutorial detalhado para o envio dos textos.

Não que isto seja relevante ao convite, mas sou médico endocrinologista, fiz também Medicina Interna e realizei estas especialidades no Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre, segundo maior complexo hospitalar do SUS do país, um dos locais onde a Saúde de Família anda sendo, bem como em Campinas, bem desenvolvida.

Minha esposa esteve em Campinas - ela é psicóloga - fazendo estágio no Cândido Ferreira, e voltou positivamente impressionada.

Um abraço fraterno e até breve.