terça-feira, 14 de outubro de 2008

O diário e o trabalho de campo


Brandão (2007) coloca o trabalho de campo dividido em três momentos, o primeiro relacionado à confecção do diário de campo em si, a anotação do que está acontecendo (um tanto quanto descritivo). Um segundo momento relacionado às explicações e reflexões sobre aquele momento, podendo ser feitas em ato ou posteriormente. O terceiro momento é o retorno destas reflexões para os próprios atores envolvidos.

Sou um usuário costumaz do diário de campo. Primeiro de forma pouco sistematizada e sem enxergar a potencialidade que se escondia atrás dessa prática. Auxiliava-me bastante nas discussões do movimento estudantil, por exemplo. Usava-o sempre na sua extrapolação instrumental, como transposição da contigüidade para classificação dos fatos observados, como forma de levantamento de dados a serem compreendidos e interpretados e serem cruzados com outros dados. (Lourau, 2004) Já na Residência, a partir dos estudos sobre Análise Institucional, incorporo-o no meu arsenal de ferramentas para os estudos de campo.

Ao aproximar-se do campo é necessário um tempo para gerar algum grau de confiabilidade entre os atores, para desarmar possíveis atitudes defensivas, conscientes ou não. (Brandão, 2007) Uma atitude interessante nesta aproximação (e acredito que durante todo o trabalho de campo) é a observação participante. Diferentemente da neutralidade pretendida (e não alcançada, logicamente) pelos antigos antropólogos (antigos? Imagino que alguns ainda têm a pretensão da neutralidade da ciência), entendo que o observador é implicado no campo. Invariavelmente dele participa e nele intervém. Assim, a Participação se coloca tanto no sentido de se fazer presente no lugar, observando e compreendendo aquilo que está acontecendo, como participar do cotidiano das pessoas e se envolver com o próprio trabalho quando possível. (Brandão, 2007) Sobre a Observação, Lourau a entende feita pelo pesquisador (neste caso, estudante, estagiário ou como queiram chamar) na construção de uma distância quanto a um objeto, mas também devendo efetuar o caminho inverso obtendo familiaridade com o campo de estudo. Esta familiaridade é entendida tanto pela percepção passiva quanto pela construção ativa de relações de contigüidade entre o pesquisador e as coisas, as pessoas. Assim, o observador é implicado no campo e torna-se indispensável a análise desta implicação. (Lourau, 2004).

Ao se confundir observador e observado, quando o pesquisador se envolve pessoalmente com o campo, o que já foi colocado como um pressuposto do observador (ele está sempre implicado com o campo), o diário de campo pode extrapolar o aspecto funcionalista e se tornar uma ferramenta para a análise das implicações (Lourau, 2004), possibilitando outra leitura dos dados levantados.

Senti-me instigado em colocar o diário de campo online tentando responder a alguns desafios. O diário de campo como interessante ferramenta para análise de implicações e para tentar trazer à tona o extratexto, limita-se em uma investigação participativa por ser considerada muito pessoal. Afinal, como partilhar a produção de um diário, que para sair da pessoalidade e ser entendível pelos leitores precisa ser pré-processado, ou seja, de uma forma ou de outra já sofre “censuras”?

O diário, em um blog, tem a potencialidade de torna-lo mais dinâmico, participativo. Essa é a expectativa. Que aqui venezuelanos e brasileiros possam trocar idéias e opiniões entre si e com o autor, de forma a influenciar inclusive nos rumos e perspectivas do próprio estágio. Lógico que também acaba sendo um pretexto para facilitar uma aproximação institucional entre Campinas e os atores que atuam na saúde com os quais terei contato.

Para “encerrar” o assunto, Rèmi Hess coloca o diário como uma forma pedagógica de levar as pessoas à escrita (e vamos tentando aprender a escrever melhor!) e mais, sendo realizado por um observador participante e sendo inevitável instrumento de clareamento das relações do autor com seu trabalho e com a instituição em que está inserido, é uma ferramenta potente de intervenção (Hess, 1988), mesmo que ao ser divulgado sofra as censuras do autor e/ou dos editores para se adequar aos códigos sociais e políticos vigentes. E quais as censuras que este escritor sofreria? Provavelmente as mais relevantes seriam as auto-impostas na tentativa de atentar ao cuidado com o próximo. Cuidado em não expôr pessoas com quem esteja convivendo ou com quem já tenha trabalhado. Cuidado em não ultrapassar limites éticos. Pode ser um desafio em uma escrita pessoal, tornada pública.


Brandão, C. R. (jan/jun de 2007). Reflexões sobre como fazer um trabalho de campo. Sociedade e Cultura , pp. 11-27.

Hess, R. (1988). Uma técnica de formação e de intervenção: o diário institucional. In: R. e. Hess, Perspectives de l'Analyse Institutionnelle (A. Abrahão, & L. Mourão-Colin, Trads., pp. 119-138). Paris: Méridiens Klincksieck.

Lourau, R. (2004). Implicação e Sobreimplicação. In: S. Altoé, René Lourau: Analista Intitucional em Tempo Integral (pp. 186-198). São Paulo: Hucitec.

Lourau, R. (2004). Implicação: Um novo paradigma? In: S. Altoé, René Lourau: Analista Institucional em Tempo Integral (pp. 246-258). São Paulo: Hucitec.

Lourau, R. (2004). Uma técnica de análise de implicações: B. Malinowski, diário de um etnógrafo (1914-1918). In: S. Altoé, René Lourau: Analista Institucional em Tempo Integral (pp. 259-283). São Paulo: Hucitec.