sexta-feira, 24 de outubro de 2008

E na Venezuela, o que rola?

Abaixo um texto fruto das minhas pesquisas até agora. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência.

Neste país, até 1936 a saúde não era associada ao conceito de Estado. As ações de saúde estavam mais vinculadas à medicina popular e tradicional local. A partir de então, pressionado pelo desenvolvimento da indústria petrolífera, cria-se o Ministério da Saúde e Assistência Social. É um período de desenvolvimento do sistema de saúde voltado ao combate das doenças endêmicas e epidêmicas, caracterizado por forte dependência tecnológica e programática, mas que assentou as bases do que se desenvolveria posteriormente. (República Bolivariana de Venezuela)

Assim como muitos outros países, a Venezuela também se propôs a cumprir as orientações da Declaração de Alma Ata, visando “Saúde para Todos no ano 2000”. A Atenção Primária em Saúde era ponto decisivo desta declaração e a partir de 1978 ganhou importante visibilidade. Apesar disso, a pressão do neoliberalismo, nos últimos 15 anos do século XX, teve mais força. Através de entidades como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, recomendava-se a diminuição da presença do Estado no financiamento das políticas sociais. O resultado foi a privatização, descentralização, desregulação de preços e a grande abertura para investimentos estrangeiros. A população empobreceu e a desigualdade aumentou. A privatização chegou à seguridade social e na saúde teve como resultado a distorção da atenção primária, com serviços públicos “pobres para pobres”, programas focais e exclusão do controle social. No final da década de 90 a atenção primária a saúde já estava abandonada, havia estímulos públicos para construção de serviços privados de saúde, o cuidado estava centrado no hospital (privado) e o setor de diagnose e tratamento estava na mão das indústrias farmacêuticas e de equipamentos médicos. Os indicadores econômicos e de saúde eram desalentadores.(Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008) (República Bolivariana de Venezuela, 2001).

A Constituição de 1999 traz a discussão sobre a saúde para o centro novamente, entendendo-a de maneira integral, com componente preventivo, ambiental e transformando da realidade socioeconômica do indivíduo e da sua comunidade. Intencionava-se expandir radicalmente a rede de atenção primária à saúde, mas a formação dos profissionais de saúde voltada para o mercado privado colocou-se como um primeiro empecilho. Junto com a mudança do sistema de saúde discutiu-se a mudança das práticas de formação destes profissionais. (República Bolivariana de Venezuela)

Princípios como os da co-responsabilidade, solidariedade, protagonismo e participação popular, estabelecendo uma nova relação entre Estado e Sociedade, reforçando o papel das comunidades na formação, execução e controle da gestão pública, contaminam o debate sobre a saúde nesta constituinte. (República Bolivariana de Venezuela, 2001) Após sua regulamentação o Ministério da Saúde foi reestruturado e o Sistema Público Nacional de Saúde foi criado. Este deu especial ênfase para promoção e prevenção, participação de comunidades organizadas e fortalecimento da atenção primária. O foco nas necessidades de saúde da família e a progressiva eliminação das taxas de uso aumentaram muito o acesso aos cuidados de saúde. O Plano Estratégico de Saúde (PES) do ministério estabeleceu diretrizes para a promoção de saúde e aumento da qualidade de vida. (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)

O Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social para o período de 2001 a 2007, para o qual o PES serviu de arcabouço filosófico e político, reforça a saúde como um direito de todos os cidadãos, tendo o Estado o dever de prover um sistema de acesso universal, descentralizado, intergovernamental, intersetorial e participativo. Reconhece que a garantia da equidade seria um dos maiores desafios daquele momento. (República Bolivariana de Venezuela, 2001)

Assim, em 2003, através de um convênio de cooperação internacional firmado entre Venezuela e Cuba inicia-se o Plan Barrio Adentro, como ponto de partida para o desenvolvimento de uma rede de atenção primária à saúde. (República Bolivariana de Venezuela) Neste convênio, no artigo IV, Cuba disponibiliza os serviços médicos, especialistas e técnicos para prestar serviços nos lugares onde eles ainda não existam e para oferecer treinamento aos trabalhadores venezuelanos dos diversos níveis, o governo venezuelano se compromete a cobrir moradia, alimentação e transporte destes trabalhadores. (Misión Barrio Adentro, 2003)

O Plan Barrio Adentro se desenvolveu em fases. A primeira foi de diagnóstico e implantação apenas em algumas cidades, verificando a aceitação dos médicos cubanos por parte da comunidade. Havia certa incredulidade do sucesso desta empreitada, mas a presença destes profissionais além de ter trazido a proximidade outros, também influenciou na organização e mobilização das comunidades afetadas e de outros que também solicitavam a criação de novas missões. Em dezembro de 2003 um decreto presidencial deu novo passo nesta política, o mesmo estendeu o Plan Barrio Adentro para todo o país. Em 2003 alcançou-se a marca de 10179 médicos (as) responsáveis pela saúde integral de 250 famílias cada. Em 2006 já havia sido criado 8686 postos de atenção primária à saúde. (República Bolivariana de Venezuela) (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)

Assim, ao final de 2003 deu-se início às Misiones Barrio Adentro, constituindo-se como um modelo de gestão pública participativa fundamentado nos princípios da Atenção Primária do Sistema Público Nacional de Saúde da Venezuela, quais fossem: equidade, gratuidade, solidariedade, acessibilidade, universalidade, corresponsabilidade e justiça social, respondendo a estratégias de promoção a saúde e qualidade de vida, com o desenvolvimento humano sustentável e contextualizado à realidade local. (Ministerio del Poder Popular para la Salud-Venezuela, 2005)

A proximidade da população permitiu diagnósticos mais apurados de sua realidade. Os problemas foram sendo identificados e soluções propostas. A população tomando consciência e se mobilizando por atitudes governamentais. Então, outras missões foram criadas, com objetivos diversos: alimentação, alfabetização, ensino médio, técnico e superior, documentação da população, cuidados oftalmológicos, assistência aos sem-tetos e comunidades nativas, acesso a cultura, ciência e produção tencológica e, por fim, reforma do uso do solo (agrária, com recursos e financiamentos a agricultura). (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)

A etapa seguinte da constituição do sistema de saúde venezuelano, a Misión Barrio Adentro 2, constituiu-se na implantação de centros de apoio diagnóstico (exames de laborátorio e de imagem) e emergência, salas de reabilitação e centros de alta tecnologia (serviços de apoio diagnóstico de alta tecnologia) por todo o país. (Ministerio del Poder Popular para la Salud-Venezuela, 2005). A terceira edição deste projeto, Misión Barrio Adentro 3, dedicou-se a modernização tecnológica da rede pública de hospitais do país, com prazo até fins de 2007. Por fim, o Misión Barrio Adentro 4 compôs hospitais de ensino altamente especializados. (Ministerio del Poder Popular para la Salud-Venezuela, 2005) (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)

Para Alvardo, et al, as Misiones Barrio Adentro se constituem de elementos que se interagem e que dão retorno e sustento uns aos outros. É uma rede de redes. Aposta no desenvolvimento de pessoas e idéias, que cria oportunidades e gera encontros, que identifica necessidades e então cria soluções, gerando novas oportunidades. Apostando na democracia participativa, a participação popular torna-se um eixo desta política, aberta a ação pública, ao conhecimento popular, à construção de dignidade, de identidade e de pertencimento (individual e coletivo). Este autor também elenca algumas características principais desta política, quais sejam: promoção e prevenção de saúde (com influências da Carta de Ottawa), participação social, acesso e cobertura (sendo um posto de saúde para cada 250 a 300 famílias, um centro de diagnóstico e centro de reabilitação para cada 40000 a 50000 habitantes, instalados próximo ao local de moradia da clientela, os centros de tecnologia avançado foram instalados a depender da densidade populacional, sendo 35 no total, por fim alguns centros de saúde urbanos foram convertidos em policlínicas, realizando atendimento de nível secundário), cuidado baseado em necessidades de saúde, com os serviços organizados hierarquicamente pela complexidade do cuidado, uso de tecnologia apropriada e melhoria da qualidade da assistência por nível de complexidade e cooperação internacional e solidária. (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)

Segundo o site do Ministerio del Poder Popular para la Salud da Venezuela em 2007 as missões já contavam com o seguinte quadro de recursos humanos: mais de 14.000 médicos, 4.000 dentistas, 5.000 enfermeiros, além de outros 10.000 trabalhadores de diversas categorias, sendo que destes profissionais, aproximadamente 25.000 são cubanos e outros 10.000 são venezuelanos. Já haviam sido construídos 2.708 Consultorios Populares, previsionando-se alcançar 7.008 em todo o país ao término das obras, representando um investimento de mais de 271 bilhões de Bolívares (aproximadamente 202 bilhões de reais) (Ministerio del Poder Popular para la Salud-Venezuela, 2005). Outros artigos mostram que as obras estão avançando em ritmo acelerado e estes números só fazem aumentar. A expansão do sistema de saúde e da sua cobertura não conta apenas com ações de infra-estrutura, estão sendo formados muitos “agentes promotores de saúde” e médicos generalistas com foco de atuação na atenção básica. (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)

A constituição de um Sistema Público Nacional de Saúde se dá a partir das Misiones Barrio Adentro, em redes em cada um dos níveis de complexidade do cuidado. Formando círculos concêntricos da Atenção Primária a Saúde (Barrio Adentro 1 e 2) mais internamente até os hospitais especializados (Barrio Adentro 3 e 4), mais externamente. Todos atravessados pela rede de urgência e emergência.


- Alvardo, C., Martínez, M., Vivas-Martínez, S., Gutiérrez, N., & Metzger, W. (julho de 2008). Social Change and Health Policy in Venezuela. Social Medicine , 3 (2), pp. 95-109.

- Ministerio del Poder Popular para la Salud-Venezuela. (31 de Maio de 2005). Portal-Ministerio del Poder Popular para la Salud-Venezuela. Acesso em Junho de 2008, disponível em Barrio Adentro: http://www.mpps.gob.ve/ms/modules.php?name=Content&pa=showpage&pid=239

- Misión Barrio Adentro. (16 de abril de 2003). Acesso em junho de 2008, disponível em CONVENIO INTEGRAL DE COOPERACIÓN ENTRE LA REPÚBLICA DE CUBA Y LA REPÚBLICA BOLIVARIANA DE VENEZUELA: http://www.barrioadentro.gov.ve/

- República Bolivariana de Venezuela. (s.d.). Acesso em junho de 2008, disponível em Misión Barrio Adentro: http://www.barrioadentro.gov.ve/

- República Bolivariana de Venezuela. (2001). Líneas Generales del Plan Nacional de Desarollo Económico y Social de la Nación 2001-2007.

Um comentário:

Sérgio R. Carvalho disse...

Muito interessante a síntese
Sérgio RCarvalho